Aviso: Muitos spoilers, porque eu preciso desabafar. E por, favor, a capa do livro entrega pelo menos metade da história.
Primeira Parte - Mariam
Sempre que alguém me indica um livro dramático, eu respondo: "Não, obrigada. De drama já basta a minha vida".
E se por vezes a frase pode soar meio exagerada, depois de ler somente 30 páginas de A Cidade do Sol, posso afirmar com toda a certeza que ela não é. Porque, antes mesmo de chegar ao capítulo 5, eu já estava chorando. Minha chefe, que havia me dado o livro de presente, me perguntou qual o motivo do choro. E eu menti. Disse que era porque a história da personagem era muito triste, que a mãe dela a maltratava muito...
Mas eu sabia muito bem porque estava chorando. E não era por que a história do livro era triste. Mas por ele me fazer constatar o quão triste é a minha própria vida.
Enquanto lia, escutei diálogos e situações inteiros ecoando dentro da minha própria memória e percebi muito de mim em Mariam, mesmo que não morasse no Afeganistão, não tivessem me proibido de estudar ou fosse a filha renegada de algum dos pais. A rixa entre os dois lados da família, a guerra psicológica dos adultos querendo ganhar o coração das crianças com histórias mal contadas, a infelicidade da mãe, incapaz de perseguir outro caminho que não o da vítima, o sentimento de estar no meio de uma situação mais complexa do que parece e em que todos são vítimas e ao mesmo tempo são vilões.
Curiosamente, depois dessa parte inicial, eu não chorei mais durante todo o restante do livro. E olha que desgraça foi o que não faltou.
Logo depois das lágrimas, o que senti durante a maior parte do tempo foi raiva.
Após a morte de Nana, fiquei com raiva do pai de Mariam, que nunca teve a decência de assumir a filha. Fiquei com raiva daquela sociedade machista que despreza tanto as mulheres. Fiquei com raiva da nossa própria sociedade por não ser tão diferente. E fiquei com raiva das mulheres por terem Chritian Grey como símbolo de herói romântico, quando tá na cara que o sujeito é tão doente quanto o truculento Rashid.
Segunda Parte – Laila
Na segunda parte, acompanhamos a história de Laila. Me apeguei também àqueles personagens, por motivos diferentes dos da 1ª parte. Se na primeira, chorei junto por me identificar com os dramas familiares de Mariam, na segunda eu embarquei com tudo na história de amor de Laila e Tariq.
Gostei de ver ali naquela aldeia o contraponto de tanta amargura e a esperança de um povo, que, mesmo sofrido, tinha sonhos e tentava ser feliz.
É claro que eu sabia que aquilo não ia durar muito. A capa do livro já contava algo que ainda não tinha acontecido, mas que para que de fato ocorresse, o romance dos dois estaria fadado à tragédia, é claro.
Mesmo assim torci. Me apaixonei por Tariq. Suspirei.
Não chorei pela morte dos irmãos de Laila. Mas senti uma pontada no coração com o comportamento psico-depressivo de sua mãe. E nessa parte eu quase chorei de novo.
Mas a partir daí eu senti raiva novamente. Não daquele povo, não daquela cultura, não daqueles personagens. Mas senti raiva do autor que mostrou seu lado maniqueísta e não de um jeito bom. Ele entrou num deserto de tragédia e não saiu de lá por mais de 200 páginas!!!
E ele me irritou ainda mais porque foi sádico. A cada 30 páginas, o safado nos enchia de esperança para então acabar com qualquer pedaço dela que ainda tivesse restado.
Quando Tariq foi embora e mesmo sabendo que o destino de Laila era encontrar com Mariam, eu ainda assim torci. Torci para ela sair de lá, torci para encontrar com ele. Meu coração deu saltos de alegria quando sua família anunciou a ida para o Paquistão. E no dia que eles iam fugir, uma bomba atingiu a casa deles e matou os pais de Laila.
E não deu mais 20 páginas e o Tariq morreu também. De um jeito muito sem criatividade, aliás. Outro míssil.
Existe uma cota de tragédia que uma pessoa pode aguentar. E a minha já estava defitivamente muito próxima de se esgotar.
Parte 3 – Laila e Mariam
E aí a Laila encontrou com a Mariam, e casou com o Rashid, porque, adivinha só, ela estava grávida do Tariq.
Aí eu fiquei com mais raiva, porque, como eu já havia desconfiado desde que eles ficaram juntos, É CLARO, que ela ia ficar grávida, sozinha no mundo. É o clichê melodramático mais batido de todos. Tive a sensação de já ter visto essa história uma vez. Duas vezes, aliás. Mais de duas pra falar a verdade. Em O Clone, Caminho das Índias e América (nessa última tinha até a parte de tentar atravessas a fronteira, que eu comento mais a frente). Só que nas 3 novelas da Gloria Perez, pelo menos tinha uma dancinha no meio pra animar.
Mesmo assim, ainda dei mais uma chance à terceira parte da história, que prometia o encontro entre Laila e Mariam e a presença da primeira prometia mudar a vida da segunda. Achei bonitinho a interação das duas com o neném. Torci para as duas conseguirem fugir. Mas, é claro que, no fundo, eu também já sabia que aquilo não ia dar certo. Ainda faltavam 200 páginas pro livro acabar. Era óbvio que cedo ou tarde elas iam ser pegas (hello, eu já assisti América e a Sol só consegue entrar nos EUA na 2ª ou 3ª tentativa)
Existe uma cota de tragédia que uma pessoa pode aguentar. E a minha nesse momento se esgotou de vez.
Desde o início, mesmo com todo o sofrimento, torci para aqueles personagens. Mas a partir do momento em que a tentativa de fuga não deu certo e o talibã assumiu o governo, por mais que eu tivesse simpatia por elas, a ausência de esperança em seus horizontes me desanimou tal qual um torcedor que vê seu time perder por 3 a 0 faltando somente mais 15 minutos para o final. Foi por pouco que não abandonei o estádio.
Me perguntava se toda aquela tragédia era mesmo necessária porque depois que [SPOILER ]Mariam teve uma infância difícil, descobriu que seu pai tinha vergonha dela, viu a mãe ter se matado no mesmo dia, casou um cara velho na outra semana, perdeu um bebê e passou a apanhar do marido durante anos, ao passo que Laila perdeu amigos na guerra, os pais no dia em que pretendia se mudar, ficou sabendo da morte do namorado, descobriu que estava grávida, casou com o marido violento e agora também tomava surras quase que diariamente [SPOILER], eu já tinha entendido que a vida das duas era sofrida. Não precisava mais.
Mesmo assim, ainda tem muito mais cenas de violência doméstica e de desprezo pela mulher, uma de tortura, um parto a sangue frio, personagens passando fome, personagens abandonando filhos no orfanato... E MEU DEUS, ISSO É MESMO NECESSÁRIO????
E a essa altura ainda faltavam umas 100 páginas pro livro acabar e eu me perguntava como aquilo ainda podia ficar pior!!!!!
Pedia por favor para o juiz soar logo o apito final, para que meu time, que agora já tomava de 8 x 0, pelo menos não levasse mais nenhum gol! Pedia por favor, para que acabasse logo com esse sofrimento de livro porque eu já sabia que nada mais de bom ia acontecer aí. Não me contive e passei o olho nas últimas páginas que tinham a palavra “enterro”. Vi que ainda estávamos no ano de 95 e a história ainda iria além de 2003, bem depois do 11 de setembro, adentrando com a Guerra ao Terror, declarada pelo Bush no início da década.
Fiquei com raiva do autor de novo porque é claro que ele tinha mesmo que contar os últimos 40 anos do Afeganistão nos mínimos detalhes, mesmo que para isso ele precisasse arrastar seus personagens por 20 anos de sofrimento desnecessário em que não há avanço narrativo nenhum.
Ao invés da identificação com os personagens complexos que havia encontrado no início, só o que restava agora era uma mistura de novelas da Gloria Perez (sem as dancinhas) com um documentário sensacionalista que só faltava declarar apoio à invasão norte-americana no final e tangenciava um ode à cultura ocidental. Tudo era previsível e unidimensional e arrastado demais. Já tinha acabado o amor. Só não tinha acabado o livro.
Parte 4 – O final
Felizmente, eu estava errada, pois, nesse momento em que toda a esperança já tinha evaporado, eis que me aparece, no maior estilo Jamanta, Tariq, vivinho da silva, para esquentar novamente o meu coraçãozinho.
E então, finalmente se acendeu a luz do fim no túnel, e a história rumou em direção a um final agridoce, mais ou menos feliz, passando por momentos de tristeza, sim, mas principalmente de redenção. A Cidade do Sol deixava de ser uma narrativa sobre o país e o tratamento das mulheres no islã radical e voltava a focar em seus personagens, graças a Deus!
E ok, foi satisfatório, mas ainda acho que tudo isso podia ter terminado umas 100 páginas antes, quando a gente já tinha sacado que a vida de Mariam tomou sentido com a chegada de Laila, que ela tinha se tornado uma mulher mais segura de si, etc.
Na parte 3, em que tudo ficou insuportavelmente infeliz, a história teve uns dois ou três pontos de inflexão que permitiam o mesmo final, com a mesma coerência (um ajuste aqui, outro ali e a gente podia ter passado sem a parte do parto, da fome e do abandono da filha, pelo menos). Porque, afinal de contas, assim que a tentativa de fuga fracassou, ficou óbvio que o único jeito de sair daquela situação era matando o marido.
E mesmo depois disso, a predileção do autor por contar tudo nos mínimos detalhes, ainda arrasta o livro por mais 50 páginas desnecessárias. Uma elipse ali logo após a despedida das duas cairia bem, mas, pra quem já tinha mostrado tanta gente morrer, até que a opção por narrar a morte de sua personagem principal não é das mais recriminadoras. O que me deixou chateada mesmo foi como, já praticamente no final, o autor tangencia insinuações que associam a invasão norte-americana à volta da paz e da tranqüilidade.
No final, não foi uma experiência ruim. O livro é envolvente, tem um viés político interessante e até determinado ponto personagens bem construídos. Só que eu fico muito revoltada quando percebo maniqueísmo dramático nos autores. E de drama já basta a minha própria vida.
And sometimes it's a sad song