segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A cena do celeiro

Em tempos de Netflix e maratona de uma temporada inteira, já é um fato que a linguagem televisiva das séries mudou. 

Saem os procedurais com uma leve premissa e casos da semana que aguentam 25 episódios por ano, entram as séries mais curtinhas, feitas para se consumir de uma só vez em que os episódios são “capítulos” de uma obra maior (e cada vez menos “episódicos”, como o antigo formato parecia sugerir). Se antes era possível perceber como os roteiros adequavam seus atos à realidade das paradas para os comerciais, com ganchos que deixavam o espectador “pendurado” até a volta das propagandas, agora os ganchos ficam reservados principalmente para o final dos episódios de forma que sigamos grudados na tela até o final da temporada. Aquele breve resumo de “nos episódios anteriores”, também deixam de fazer sentido nesse “novo jeito de assistir TV”.

Particularmente acho a maneira de acompanhar as séries introduzidas pela Netflix um tiro no pé. Os seriados quando têm seus episódios liberados todos de uma vez só tem relevância cultural de no máximo uma semana, ao passo que, ao liberar os episódios semanalmente, a presença nas redes sociais, na mente e na vida das pessoas se estende por meses. É o sentimento de comunidade, de todo mundo assistir junto (mesmo que não exatamente ao mesmo tempo), de marcar seu nome naquele pedaço de tempo que torna uma série inesquecível. E esse tipo de engajamento foi o que tornou Lost e Game of Thrones verdadeiros fenômenos culturais. Acredito que seja muito difícil que isso se repita daqui pra frente.

Mas nada faz mais falta nesses tempos de streaming do que “a cena do celeiro”. Calma, eu explico.

A estrutura de um episódio clássico de Smallville (e de outras séries pré-Netflix) consistia em:

1) Clark acorda de manhã, vai para o colégio, encontra Chloe e discutem no Mural do Esquisito a aparição de alguma criatura ou comportamento estranhos na cidade (o “Freak of the Week”)

2) Paralelamente tem uma outra trama envolvendo um personagem secundário que vai se cruzar com a história do “freak of the week”, e que possivelmente constituirá um dilema ético para Clark ou para o outro personagem. Nessa parte do episódio, eles tomam alguma decisão equivocada, os personagens brigam. Geralmente temos um discurso filosófico do Lex ou do pai do Lex.

3) Clark está discutindo alguma coisa com a Chole, e, durante a conversa, eles chegam à conclusão de que o vilão está para concluir seu plano maligno naquele segundo. Clark desaparece com sua supervelocidade, deixando a Chloe falando sozinha. Clark usa seus poderes e salva o dia.

Nesse ponto você já sabe que o episódio basicamente acabou, e falta só mais um bloco para o desfecho. Na época do Celso Portiolli no SBT, depois te ter aguentado comerciais de mais de 10 minutos, você sabe até que, se quiser pode mudar de canal, mas não troca porque logo em seguida vem, sim, ela mesma: “a cena do celeiro”.

Nesse bloco, Clark e seu pai, ou Clark e algum amigo com quem tenha tido uma conversa filosófica ou uma briga no meio, fazem o encerramento daquele episódio. Eles refletem, geralmente no celeiro, sobre como estavam sendo estúpidos ou como suas ansiedades não faziam sentido, pedem desculpas (os dois envolvidos!) e fazem as pazes. Os personagens tiram suas lições, sobe a música (geralmente de alguma banda pop-rock americana obscura, que você provavelmente nunca ouviu falar. Mas a música é boa e você depois vai baixa-la no eMule, após o final do episódio. Isso depois de descobrir quem tá cantando em algum portal especializado na série, claro), a câmera pega distância e pronto. Todos estão felizes de novo. O espectador está pronto para seguir com a sua vida, e semana que vem tem outro episódio pra gente assistir.

Vale ressaltar que a “cena do celeiro” é uma cena não só presente em Smallville, mas em diversas outras séries dos anos 2000, como The OC, House, Greys Anatomy, etc.

Pois bem, falei isso tudo porque gostaria de deixar registrado aqui como “a cena do celeiro” está fazendo falta, não só na TV, como nas nossas vidas.

Nessa loucura de redes sociais, a gente parece que perdeu a capacidade de CONVERSAR. De escutar o outro e ter EMPATIA para entender o outro lado. No meio desse caos que se transformou a internet, com gente do mal jogando iscas o tempo todo para que a gente brigue sem parar, a gente tá se esquecendo que as pessoas são HUMANAS e fatalmente VÃO COMETER ERROS! A gente tá precisando de mais “cenas do celeiro” em que a gente reflete um pouquinho sobre o que está acontecendo, e aprende com os erros e PEDE DESCULPAS e PERDOA os outros também. Tem muito dedo apontado. Muita militância, muito cancelamento. Pouca VONTADE de entender o que o outro de fato tá querendo dizer.

Esse extremismo sem conversa, em que tudo a gente quer “ganhar no grito” pra mostrar que TÁ ERRADO, às vezes se esquece de que tem situações em que realmente não são tão simples ou “preto no branco” quanto parecem. Tem alguns graus de cinza no meio que precisam ser considerados, sob pena de cairmos no mesmo discurso de censura que a gente tanto reclama.

Eu sei que é difícil, principalmente porque a nossa tolerância no passado recente parece ter dado brecha ao empoderamento de uma galera realmente do mal, que utiliza do argumento da liberdade de expressão pra espalhar discurso de ódio. Mas A GENTE TÁ PERDENDO O BOM SENSO!!!!!

A gente tá precisando RESPIRAR, e DESLIGAR um pouco, para REFLETIR de fato sobre o que está sendo dito. Essa era outra função essencial da “cena do celeiro”. Fala a verdade, tem umas séries hoje em dia que nem são boas, só são viciantes. Só que a gente não tem TEMPO de perceber isso, porque viu tudo de uma vez. A gente tá precisando de “menos timeline infinita”, e mais artigo de jornal e revista, mais livro, mais blog.

A gente tá precisando escutar uma música de uma banda pop-rock obscura e descobrir quem canta num portal especializado. A gente tá precisando gastar mais nossa energia em criar e acompanhar portais especializados e conhecer gente diferente que goste das mesmas coisas.

Até o Netflix sabe que deixar o streaming rolando o tempo todo direto é ruim, e depois de um tempo, ele dá uma parada e pergunta se você tá vivo, se não quer fazer outra coisa, ir comer, respirar um pouquinho.

A gente tá precisando do Celso Portiolli trazendo toda a sua simpatia e leveza para o meio das séries e das nossas vidas. Não, brincadeira, do Celso Portiolli a gente não tá precisando não.

Não dá pra acreditar que a Chloe hoje tá presa acusada por causa de uma seita em que rolava tráfico sexual.

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