Depois de maratonar o revival, e ficar sem dormir, e discutir incansavelmente os novos episódios, eu ainda não consegui superar Gilmore Girls. Porque eu sou nerd. E faço o dever de casa, como diz a Ju.
Fui ler todas as entrevistas dadas pelos criadores sobre série, e terminei encontrando essa daqui, da época que eles decidiram abandonar a série. Eu provavelmente já tinha lido essa entrevista há muito tempo. Mas nunca tinha reparado na similaridade que as falas de Amy e Dan refletem a série. A entrevista é incrivelmente dramática. Você sente a dor e a raiva pulsando nos dois. Você sente o desespero de Michael Ausiello (jornalista e fã assumido, tão fã que fez uma ponta no revival). Parece até um Friday Night Dinner. Tem falas que parecem ter sido roteirizadas para Gilmore Girls. Estão lá a irreverência da Lorelai, o extremismo da Paris, o sarcasmo da Emily.
Em outra entrevista que li, Dan Palladino chega a comentar como Lorelai compartilha muitas das características da própria Amy. Mas, me arrisco a dizer que Amy Sherman é muito mais Paris do que Lorelai, pelo menos no trabalho. A teimosia de querer que tudo seja do jeito (isso a Lorelai tem de sobra também), o jeito centralizador como conduzem a série e a decisão de largar um trabalho que você tanto ama, justamente pelo próprio bem do programa, baseada numa decisão 100% racional (vê se isso faz sentido pra vocês), são situações com o selo Paris Geller de resolução de problemas.
Pra você que não acompanhou a treta na época, vou fazer um resumo. Mas não deixe de ler a entrevista, porque o melhor dela, assim como Gilmore Girls, não está no conteúdo bruto, mas sim nos detalhes, nas entrelinhas, em tudo aquilo que talvez não tenha sido dito (e essa é uma das belezas desse final também, mas isso eu comento depois).
Os contratos dos showrunners eram renovados ano a ano. Então todo o ano, eles tinham que sentar numa mesa e negociar se a série ia continuar no ar ou não. Eram meados da 6ª temporada, e Amy e Dan queriam renovar por pelo menos mais dois anos, pra planejar melhor as histórias, saber como iam desenvolver os arcos, até de um eventual final. Outra reclamação era que eles estavam trabalhando demais. Faziam tudo na série (planejavam, escreviam, dirigiam, editavam...). Precisavam contratar mais gente pra delegar. Não dava mais pra continuar assim, sob pena de queda da qualidade da série. A Warner simplesmente ignorou os pedidos. Falou que ia renovar um ano só, e que não ia contratar mais ninguém. E aí Amy e Dan ficaram muito revoltados e largaram a série.
E eu fiquei pensando no quanto essa história não representa um pouco do que foi Gilmore Girls nas telas também. É uma história que é...complicada. Não tem certo e errado. Não tem decisão 100% racional. E apesar de serem “negócios”, tem muito amor envolvido. Os personagens são falhos. Fazem besteira. E se arrependem. E repetem exatamente os mesmos erros, porque ainda tem um monte de mágoa ali dentro.
O final desse behind-the-scenes você já conhece. A sétima temporada continuou sem eles e, por mais que não tenha sido uma temporada RUIM, nessa altura do campeonato, os espectadores não conseguiam separar a história mostrada na tela do drama ocorrido fora delas, e a audiência foi caindo, e a sensação geral era que era melhor terminar a série de uma vez. O último episódio, mesmo escrito e gravado sem saber que ia ser realmente o último, surpreendentemente, foi muito bom. Muita gente ficou com a sensação de que se fosse planejado, talvez não fosse tão legal. Uma festa de despedida para Rory, a cidade inteira reunida, Lorelai fazendo as pazes com a família e reconciliando com Luke. É um episódio lindo, amarradinho, extremamente satisfatório.
Mas a gente ficou sem saber as 4 últimas palavras. A gente ficou sem ver o casamento de Lorelai e Luke. A gente ficou sem o final original que Amy tanto alarmou que sempre soube qual seria. Por muito tempo a gente pediu um filme. A gente viu Veronica Mars fazer um com o dinheiro dos fãs, inclusive! Mas não, assim como muitos relacionamentos de Lorelai, ainda não era “o certo”.
E o tempo passou, e com a paciência de Luke, a gente esperou. E a série começou a passar em reprises na TV (tanto lá, quanto aqui!) e ganhar mais fãs. E surgiu o Netflix, que começou a passar as temporadas clássicas, e a série ficou mais popular do que qualquer um poderia imaginar naqueles tempos! A série envelheceu muito bem. Porque fala de relacionamentos e família e conflito de gerações. E ela mesma atravessou gerações nesse período! E a gente viu uma onda de revivals, em sua maioria totalmente desnecessários, tomarem conta tanto da TV tradicional, quanto das plataformas de streaming. E o único que realmente PRECISAVA acontecer...nada! E Amy falava que quando fosse a coisa certa ela ia fazer. E a gente, como Luke, esperou mais um pouco.
Até que veio a chance de retomar a série. 9 anos depois. 16 anos depois do primeiro episódio. Parecia mágico! “I smell snow!”, diria Lorelai. Olha tudo o que teve que acontecer com o mundo para que o revival saísse do papel! E praticamente todo mundo voltou, nem que fosse pra fazer uma ponta! E o revival foi liberado e... é lindo!
É poesia, é arte, é emoção e comédia e fanservice, tudo misturado. Como só Gilmore Girls poderia oferecer.
Não é perfeito. Ainda tem um certo ressentimento de Amy Sherman ali, tal qual o relacionamento de Emily e Lorelai, já que a showrunner fez questão de ignorar deliberadamente todas as decisões criativas tomadas durante a 7ª temporada. E muitos personagens secundários foram subaproveitados por causa desse formato de 4 episódios de 1h30. E algumas coisas que parecem que deveriam ter acontecido uns 5 anos antes. Muitos diálogos expositivos... Mas a história que deveria ter sido contada tá ali, intacta, por incrível que pareça.
Talvez uma das maiores mágoas desse revival ter demorado tanto foi a morte do Richard. Mas até sua ausência foi tão bem aproveitada que pareceu planejada. E de alguma forma, mesmo com todo esse tempo, tudo parecia muito certo, mesmo saindo tudo errado lá atrás, mais ou menos como a própria trajetória de Lorelai, grávida aos 16, mas uma mulher incrível aos 32.
Tem gente que se preocupa muito com o final dos personagens. Tem gente que gosta de enxergar as coisas como um todo. Geralmente estou no segundo grupo (vide o final de Um Dia, que eu defendo à beça). E o final de Amy e Dan é lindo, apesar de em nada lembrar o que tivemos lá atrás (que eu também gosto muito, e fico feliz de ter existido, e nem tenho pretensão de escolher entre um dos dois). Ele não é amarradinho, e em alguns níveis, nada satisfatório. Ele deixa você pendurado, pensando, imaginando, refletindo. Não é um final fácil. É um final controverso. Pra caramba. Porque Gilmore Girls, por trás das loucuras de Stars Hollow e das referências a cultura pop, não é uma série fácil. E sempre foi controversa. Tem gente que se acha a própria Lorelai, tem gente que não entende como Lorelai pode ser tão...Lorelai(!). Tem gente que se inspira na Rory, tem gente que não suporta a Rory. Tem gente que torce pro Dean, pro Jess e pro Logan.
E na maioria das vezes fomos um pouco disso tudo durante essa jornada. Mudamos de ideia sobre nosso amor ou ódio aos personagens a cada episódio. Mudamos de ideia sobre nosso amor ou ódio aos personagens porque nós mesmos havíamos mudado, quando fomos assistir novamente. E dissecamos cada um deles. E inventamos mil teorias, e fomos um pouco psicólogos porque os personagens são ricos (alguns até no sentido literal), e complexos e essencialmente humanos. E mesmo com o final da série (de novo!), vamos fazer isso ao longo de muito tempo ainda. Porque Gilmore Girls sempre deixou as melhores coisas nas entrelinhas, apesar de possuir mais linhas do que qualquer outra série de TV.
Gosto especialmente da parte do livro, não só porque, das figuras de linguagem, a metalinguagem é a minha preferida. Mas porque ela se encaixa tão bem! E confirma minha teoria final de que Gilmore Girls, com todas as suas qualidades e defeitos, é uma metáfora de si mesma.
E quando mais eu penso no final, na jornada, no livro, nas 4 palavras, no ciclo se fechando, mais eu enxergo beleza e complexidade na série que é Gilmore Girls. Uma “série sobre pessoas”, como a gente gostava de falar nos idos anos 2000. Uma expressão que caiu em desuso, inclusive, porque nunca mais se fez “séries sobre pessoas” do jeito que se fazia.
Não que já tenha existido alguma série que pelo menos se parecesse com Gilmore Girls. Não teve, e acho que nunca vai ter. E é isso o que a torna única. É isso o que a torna... Gilmore.