quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Passaporte para palavras

É engraçado perceber como a cultura de cada povo se reflete na língua e no seu jeito de falar. E não precisa nem ir muito longe. Aqui mesmo, no nosso próprio país, vemos o baiano, que fala como se o tempo não existisse; o carioca, que se acha o ixperrrrto; o gaúcho, que mais parece estar cantando o tempo todo; e sem esquecer do mineiro, que de tão matuto come o final das palavras tudin’.

Atravessando as fronteiras, a gente vê a língua portuguesa com todas as suas regras, conjugações, acentos, concordâncias e um monte de nerdismos lingüísticos que na oralidade todo mundo ignora, mas nem por isso a língua fica menos gostosa e poética aos ouvidos. Não por acaso, dá até pra entender um bocado de coisa dita por nossos vizinhos hispanohablantes, afinal, o berço das duas línguas se deu dentro da mesma península – há quem diga até que o espanhol é o português mal falado.

Ali do lado da tal península encontramos os franceses, que se acham ‘tre chic’ e falam fazendo biquinho e os russos e alemães, que parecem sempre com raiva – talvez por culpa do frio - e qualquer palavra banal nos faz ter vontade de responder: “É a sua mãe, tá legal?”. Já os italianos, na verdade, falam é com as mãos, e, se amarrados, creio eu que sentiriam muita dificuldade de se expressar. (Imagino como deve ser difícil extrair qualquer informação de um mafioso italiano algemado. Vai ver é por isso que o Berlusconi está solto até hoje...).

E finalmente, a língua inglesa, que em qualquer lugar do mundo se destaca pela praticidade. É quase como comida congelada. As palavras curtinhas, quase sempre monossílabas (e eles ainda tem a coragem de abreviá-las!), a ausência da concordância de gêneros, praticamente nenhuma desinência verbal e, acima de tudo, a facilidade que se tem em transformar qualquer substantivo em verbo sem nenhum tipo de esforço ou modificação.

E se num passado não muito distante as pessoas e as palavras transitavam pelo mundo com muita dificuldade, hoje em dia, a interação entre as pessoas passou a um nível mundial e quantidade de informação, além de infinita, está a apenas um clique.

Ao contrário das pessoas, as palavras não precisam de passaporte, e nesse contexto, mais uma vez a tradução/adaptação se faz importante tanto por sua presença, quanto pela sua ausência, uma vez que parece que entramos numa Torre de Babel contemporânea. Engraçado notar que aquilo que serviria para unificar (a tal globalização) acaba por segregar e confundir as pessoas.

Exemplo:
Em Contabilidade de Custos, temos 2 tipos de custeio: por ordem e por processo. O custeio por processo é feito de acordo com os processos pelos quais passa o produto e por ordem de acordo com os pedidos. Ora, se o custeio por processo é feito levando em conta, obviamente, os processos, por que diabos o custeio por ordem tem a ver com os pedidos e não com a ordem na linha de produção? Depois de muito tempo, percebi que o caso do custeio por ordem é igualmente óbvio, só que TALVEZ seja derivado de uma tradução preguiçosa, porque ORDER em inglês, nesse contexto significaria PEDIDO.

Em ambientes acadêmicos, esse tipo de coisa dificulta o entendimento e o aprendizado das coisas. E numa empresa em que o jargão corporativo (muita vezes também preguiçoso e até idiota) domina também é comum ver expressões como schedular, asap* (as soon as possible), entre outras, que podem causar um problema até maior de comunicação entre os empregados. Tudo porque a pessoa não quis escrever “agendar” e “o mais rápido possível”.
*Microsoft é mestre nessas abreviações. Uma vez vi uma palestra dela em que o cara dizia que lá eles abreviavam até o nome das pessoas, colocando a primeira letra do primeiro nome junto com o último sobrenome. Nesse dia eu e meus colegas ficamos pensando que alguém que se chamasse Alberto Rocha (A Rocha) ia sofrer por lá...

E mesmo fora dos lugares “obrigatórios”, é comum a prática por parte da população dita mais esclarecida desse tipo de adaptação besta e desnecessária ou mesmo a total importação de termos estrangeiros principalmente por culpa da Internet. Aí você põe aí na lista expressões como guilty pleasure, shame on me, cool, plot, flop, losers, ever, a.k.a., que não só têm substitutos totalmente aceitáveis em nossa língua materna (prazer com culpa, ai que vergonha, descolado, enredo, fracasso, manés/otários, de todos os tempos, ou) como às vezes são utilizados sem nem saber direito o que significam, ou sem se preocupar se o seu interlocutor sabe o que significa.

Isso quando não aparecem uns neologismos horrendos tipo beliviando, começam a utilizar uma palavra com sentido de outra - como no caso do order/pedido/ordem (que não está só nos livros e realmente faz parte de todas as relações comerciais) ou no caso do realizar usado com sentido de perceber (realize) -, abusam do gerundismo por causa do future continuous, e aí vai.
Obs.: Um das maiores culpados pelos estrangeirismos são os termos ligados à informática, geralmente órfãos de palavras que os definam, uma vez que quase sempre tratam de alguma novidade no mundo. Mas deletar, setar e restartar são palavras gringas que com alguma maquiagem ainda enganam de nacionais. Agora upar, printar, reloadear, deployar, downloadar, atachar (etc) são MUITO feios, pelo amor de Deus!

Pois é, eu sei que isso é fruto da dominação cultural-econômico-midiática estadunidense e que por vezes a língua inglesa é muito mais prática que a nossa (lembra que eu falei lá em cima que inglês é igual comida congelada?) e que às vezes as pessoas em seu dia-a-dia têm dificuldade de encontrar uma expressão similar assim de supetão durante uma conversa sobre aquele artigo maravilhoso que elas leram no New York Times (ou em qualquer outro veículo de comunicação), e até que a fonética de algumas delas pode alterar sua intensidade, mas, sinceramente, eu não estou nem aí.

Eu sou muito chata com essas coisas. Não vou dizer que não as use, mas as evito ao máximo. Acho essa história de “ah, mas eu penso em inglês” uma desculpa muito esfarrapada de gente prepotente e digna de Luciana Gimenez. E eu não sei você, mas eu acho que ser associado à Luciana Gimenez não é exatamente uma coisa tão in assim. Acho muito mais elegante buscar uma palavra no nosso próprio idioma, que cá pra nós tem vocábulos muito mais bonitos (fala aí, “vocábulo” é muito lindo, né não?), principalmente se a intenção for essa de “ficar por cima da carne seca”.

Então, fica a dica: toda vez que você estiver escrevendo e pensar num termo in ingrish, tente trocar para um nacional. Busque na memória, no dicionário ou no Google uma outra expressão com significado semelhante. E se ela, por acaso, for uma expressão antiga, caipira, fora de uso, ou um regionalismo, melhor ainda. O texto corre o risco de além de ficar mais bonito, ficar mais engraçado também. E se a intenção for parecer mais descontraído, a gente tem um monte de sufixos para adicionar nas palavras ditas sérias. Não precisa importar uma e colocar o nosso sufixo mesmo assim... Sei lá, fica muito artificial, sabe?

Mas o pior de tudo é que eu entendo que isso não é de hoje e que não temos para onde fugir. Se não fossem os estrangeirismos, não seríamos o país do futebol e sim do ludopédio. Um dia a língua considerada chique era o francês (aliás, chique deve vir francês também, né?) e dela pegamos emprestado os buquês, o abajur e o sutiã. E o que seria do português (do Brasil, pelo menos) sem a influência tupi do abacaxi (rimou!)? Aliás, até que ponto o português é português? Até que ponto ele não é latim, grego, galelo, sei lá? Até que ponto as palavras que a gente está acostumado a usar não são importadas de outros lugares? Até que ponto elas não são oriundas de alguma tradução miserável infeliz? Aliás, até ponto isso importa mesmo?

Essas são algumas das coisas que eu também fico me perguntando às vezes. Porque as palavras não precisam de passaporte. E apesar de todo esse texto, não sei dizer se isso é bom ou ruim. Acho que é bom, desde que elas se adequem a nós e não nós a elas. Pra variar é uma questão de costume. Só que tem coisas que eu não consigo me acostumar.

2 comentários:

  1. Adorei o texto! (pra variar...)
    Quero aprender todos os idiomas do mundo, mas por enquanto vou ficar só com o português, inglês e italiano.

    Eu sou mestre em usar no dia-a-dia termos "informáticos" ou em outro idioma. Principalmente quando termino de estudar (e eu sempre estudo inglês e o italiano em paralelo, então imagina a bagunça!) Pra escrever eu não uso taaaanto assim, depende do meio. Se for no Twitter, por exemplo, vai a palavra com menos letras. Mas para documentos e e-mails de trabalho eu evito.

    Eu sou muito prática, então se essa mistura toda servir pra facilitar as coisas, eu apoio.

    Bjos

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  2. Quando eu era criança, achava que todo brasileiro com sotaque (na minha visão) falava errado. Quando eu cresci um pouco foi frustrante descobrir que o Carioca também é visto como um dos que tem sotaque pelos outros.

    Como eu falei antes no gtalk, há termos que são aceitáveis. Eu gosto de restartar, upar, startar. Agora schedular é demais...

    É só uma questão de controle por parte das pessoas. Lembro que no meu 1º dia na UERJ um garoto disse que nosso recente grupo era "uma guild de nível 1". Até eu entender que ele estava querendo dizer que éramos um grupo de calouros demorou. Descontrole total!

    Mas há casos que facilita mesmo.

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