segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Você, Tonya

Desde que ouvi falar desse filme pela primeira vez, me perguntei por que seu título começava com a primeira pessoa do singular do pronome pessoal do caso reto. Não seria mais fácil ser só “Tonya”, afinal? Terminada a sessão, penso que o “Eu” no título se deva à alta capacidade de identificação gerada pela personagem.
Durante vários momentos do filme, me peguei pensando: “Eu sou Tonya Harding”. O relacionamento conturbado com a mãe, o cabelo desgrenhado, a rebeldia em tentar se encaixar, a raiva do não reconhecimento porque sabe que tecnicamente é a melhor, a vontade de mudar o sistema... Em certos momentos, a tela parecia se transformar em espelho, tamanha a identificação com a protagonista.
Tonya Harding era uma patinadora de gelo que representou os EUA nas Olimpíadas de Inverno duas vezes. Foi a primeira americana a executar o Triplo Axel numa competição (diz que é um salto muito, muito difícil). Mas teve sua carreira interrompida graças a um incidente controverso (não vou dizer qual é, caso você não saiba, embora basta um Google para você descobrir) em que nunca foi lhe dada a oportunidade de contar a sua versão.
É um filme com altas doses de feminismo, sem em nenhum momento pronunciar a palavra, ou fazer campanha. Com temas que vão desde relacionamentos abusivos, padrões sociais altamente questionáveis, passando pelo tribunal antecipado da mídia (alô, você aí da internet que fica fazendo textão, sem ler as coisas, essa é pra você mesmo!), é o filme certo na hora certa.
Existe uma cena em que Tonya está com o rosto sangrando, sendo levada a força pelo marido, quando o carro é parado pela polícia. O policial VÊ que o rosto dela está sangrando, abre o porta-malas e encontra bebidas e duas escopetas, e DEIXA TUDO SEGUIR. Aconteceu numa cidadezinha dos EUA nos anos 80, mas podia ter sido aqui durante essa semana mesmo.
E nem por isso é um filme chato. Muito pelo contrário. Eu, Tonya te prende do início ao fim, e puxa suspiros e surpresas em diversos momentos.
Absolutamente bem executado, Eu, Tonya tira sarro da tragédia, com um humor auto-depreciativo, e uma montagem que intercala o acontecimento dos fatos com entrevistas dela e daqueles que fizeram parte da vida de Tonya. Sua narrativa, com múltiplos pontos de vista, nunca condena ou vitimiza qualquer dos personagens, muito embora alguns deles pareçam ter saído diretamente de um desenho animado, como o gordinho atrapalhado e a mãe que dá entrevista com um periquito no ombro (você pode achar que essas coisas mais absurdas são exagero do filme. Não são).
A edição às vezes videoclíptica, com direito a cortes rápidos e planos sequências espertos ao som dos maiores sucessos dos anos 70, 80 e 90, o roteiro que quebra a 4ª parede diversas vezes, e a câmera que acompanha Tonya toda vez que entra no rinque de patinação completam o serviço de trazer o espectador para dentro da tela.

Embora o trabalho de cabelo e maquiagem seja tenebroso, fazendo Margot Robbie parecer bem mais velha (e mais estragada) do que a personagem título (a verdade é que Margot já parece ter mais anos do que realmente tem, e o filme não fez nada para ajudar nesse ponto), a atriz faz um trabalho incrível, de entrega total. E eu que nunca dei nada por ela, fiquei de queixo caído.
Não é uma personagem fácil. Tonya era uma mulher que apanhou a vida toda (apanhou da mãe, do marido, dos juízes, da mídia, das pessoas...), e exatamente por isso nunca se fez de vítima. Era uma lutadora, que não desistia nunca. Mas também era amarga, orgulhosa, revoltada, com morais questionáveis, fruto de seu meio disfuncional, tanto para o bem, quanto para o mal. São de encher de orgulho as cenas em que Margot explode de felicidade ao executar os movimentos no rinque, como se ali tudo finalmente fizesse sentido. É de cortar o coração a cena em que o tribunal decide por bani-la do esporte que, literalmente, era sua vida. (Muito embora eu concorde que não houve injustiça ali. Uma atitude desportiva dessas, tinha que banir mesmo). E chega a ser emblemático que a última cena seja justamente ela levantando de um ringue de boxe.
Com tantos atributos, é de se espantar que o filme não tenha conseguido nenhuma indicação a melhor roteiro, ou a melhor filme. Mas, talvez, como a própria Tonya, sua biografia descolada e desbocada não se encaixe no perfil esperado pela Academia. Até quando?

PS. Depois de assistir o filme, faça o dever de casa e assista aos vídeos de Tonya nas competições no YouTube. A alegria dela é contagiante!
PS2. Essa semana estão rolando as Olimpíadas de Inverno e Mirai Nagasu acabou se se tornar a 3ª mulher a executar o Triple Axel em olimpíadas. \o/
PS3. Li alguns comentários de que o filme levantou polêmica por não levar a sério o problema da violência doméstica, e MEU DEUS, VOCÊS ASSISTIRAM O MESMO FILME QUE EU??? PORQUE A MULHER LITERALMENTE PERDEU O QUE PODERIA TER SIDO UMA CARREIRA DE SUCESSO EXATAMENTE PORQUE SOFREU ABUSO A VIDA TODA!!!!! Só porque o filme não mostra uma mulher sofrida e chorando o tempo todo, não quer dizer que não tenha sido grave. A cada diz que passa, vejo que está faltando interpretação de texto no mundo
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1 comentário:

  1. Parte do mérito da narrativa reside na estrutura do roteiro indicado ao Oscar, que adota a perspectiva conceitual de ‘Rashomon‘, com a intenção de enfatizar a maleabilidade do que é a verdade dos fatos. Algo que jamais saberemos inteiramente, quiçá, nem Tonya. Quando leio que um filme será baseado em fatos reais, automaticamente chama a minha atenção, adoro ver como os adaptam para a tela grande. Tambem recomendo assistir Dunkirk, adorei este filme, é um dos melhores filmes baseadas em fatos reais drama.A história é impactante, sempre falei que a realidade supera a ficção. É interessante ver um filme que está baseado em fatos reais, acho que são as melhores historias, porque não necessita da ficção para fazer uma boa produção.

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