quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Fechado para Balanço

Geralmente no início ou no fim de ano, você já deve ter visto, as empresas anunciam que ficarão um ou dois dias "fechadas para balanço". Nesses dias elas não obrigam todo mundo a ajudar na contabilidade a fim de fechar o balanço a qualquer custo, nem instalam um balanço para que os funcionários se divirtam um pouco e muito menos colocam para tocar Betty, Balanço o dia todo. Na verdade, se você achava que a tarefa tinha a ver com a contabilidade, estava correto, mas o trabalho realizado nesse dia é menos contábil do que parece e se chama INVENTÁRIO.

Também não significa que os balanços não podem entrar na empresa nesse dia

Ao contrário do que a minha mãe achou, o inventário em questão também não tem nada a ver com a herança de alguém. Fazer inventário de um supermercado, por exemplo, consiste na árdua tarefa de contar cada item dentro e fora das prateleiras, a fim de validar o estoque registrado na contabilidade. Se houver divergência, a contagem é feita de novo, e persistindo ela, conta-se novamente para tirar a dúvida.

Por isso, nos dias de inventário, a empresa tem de fechar, porque aí o sistema é desativado e naquele dia, ninguém faz mais nada (não vende, nem compra) além de contar. Ou então fazem à noite. Ou no fim de semana. E podes crer, a auditoria tem de estar lá para verificar se os funcionários todos estão contando tudo mesmo, ou estão inventando os números da cabeça deles. Já deu pra perceber que não é dos trabalhos mais intelectuais e sim dos braçais, podendo durar dias e noites (literalmente) e nas datas mais ingratas, podendo ser no dia 24 ou 31 de Dezembro, inclusive. Então, você já imagina como as pessoas ficam felizes quando ficam sabendo que estão programadas para fazer inventário.

E eu dei essa volta toda para falar que esses dias fiz meu primeiro inventário, numa fábrica de torneiras aqui do Rio.

Foi uma experiência muito cansativa. Acordei cedinho e voltei pra casa nos dois dias morta, já sem pernas de tanto andar pelo parque fabril e acompanhar as contagens em pé. No entanto, também foi uma experiência diferente e de muito aprendizado.

Primeiro porque você vê todo o processo produtivo e se sente dentro do Castelo Rá-tim-bum quando eles cantavam aquela música do “Você vai ver, fazendo tudo com carinho vai acontecer”.

Depois porque você percebe na prática que aquele filme do Chaplin em que ele fica maluco de tanto repetir os mesmos movimentos não é ficção, como já tinha dito aquele seu professor de história quando foi explicar Revolução Industrial. Coloque aqui nesta lição também conceitos das aulas de geografia, administração, contabilidade de custos e até matemática, como fordismo, linha de produção, a importância de uma política de recursos humanos, o rateio dos custos por área e problemas simples de regrinha de três, por exemplo.

E por último, porque você começa a dar muito mais valor àquilo que você tem.

Hoje o tempo voa, amor... Escorre pelas mãos...

A gente do setor de serviços está acostumado com ar condicionado, cadeirinha, computador. Mas no segundo setor, o negócio é trabalho braçal, uniforme, sinal marcando hora do almoço, comida igual pra todo mundo (e nem todo dia é das melhores), os caras trabalhando num calor infernal, perto de máquinas de carvão, com um barulho desgraçado, e muito óleo no chão. E tudo bem, eles até devem ganhar algum percentual de insalubridade, mas a gente fica pensando se este acréscimo na folha de pagamento compensa o tempo de vida encurtado... E tendo em vista a base em que será calculado esse acréscimo, a "mais valia" aí é grande.

Inventário é o único dia em que a nossa empresa permite usar traje casual: calça jeans, tênis, camiseta, afinal você vai passar o dia todo em pé. E nem pode usar roupa social mesmo. Nesse dia a gente vai ficar em contato com os operários, os caras que põe a mão na massa, usam uniforme, carregam o pesado! Se às vezes, vestidos assim “à paisana”, alguns deles não entendem o sentido do que estão fazendo nem nosso papel ali, trajar uma roupinha chique pode aumentar ainda mais a distância e a resistência ao nosso trabalho.

Alguns são legais, puxam papo, e são felizes com o que fazem, o que dá gosto de ver, tendo em vista a ralação que é. Mas dá pra ver a insatisfação de outros só de olhar. Ao imaginar aquelas condições de trabalho todo dia, você começa a entender o porquê das reivindicações. Dá pra perceber um clima de revolta no ar. E você fica só esperando o momento de alguém gritar e anunciar a volta do ludismo e quebrar todas as máquinas. Ou alguma coisa pior, sei lá.

De um certo modo, os muros da fábrica pareciam lembrar uma prisão, com os uniformes e os sinais, marcando o horário de tudo (ou uma escola extremamente disciplinada, se você quiser viajar um pouco mais*). Na verdade, existe uma teoria de administração que compara as empresas a prisões mesmo. Interessante mesmo era ver as mulheres que, mesmo cercadas de graxa, eram vaidosas e passavam batom na hora do almoço e pareciam ser outras pessoas na hora da saída, sem a roupa cheia de óleo.
* O que me lembrou daquela aula da Talita em que a gente foi debater O Alienista/Bicho de 7 Cabeças e acabou chegando à conclusão de que a hora do recreio – falo recreio até hoje, e daí? – não era nada muito diferente do banho de sol das penitenciárias.

E aí você dá graças a Deus que pôde estudar, porque sabe-se lá o que acontece com esses caras que ralam pra caramba se a empresa resolver colocá-los no olho da rua, ou se machucam durante o expediente. A competição entre os funcionários em alguns setores é ferrenha. Que empresa vai querer contratar um senhor de meia idade para esse tipo de serviço quando se pode ter um jovem de vinte com muito mais disposição?

Você sai da fábrica morto de cansado, mas admirado com a força de vontade e da força laboral mesmo (se eu fiquei assim com um dia, imagina eles em encaram essa rotina direto) da classe trabalhadora do Brasil. E o aprendizado que eu tirei do inventário, esse daí não deu pra ser contado no fim do dia, não.

PS Então, acabei de voltar de um inventário de 3 DIAS(!!!!) de uma fábrica de cosméticos, e dessa vez aprendi inclusive que se deve responder "Sim" para a pergunta "Você tem namorado?", mesmo que não tenha, a fim de cortar logo o assunto com funcionários, digamos, mais saidinhos.

3 comentários:

  1. Você me lembrou de Foucault e aquele livro Vigiar e Punir. Já leu? Ele compara prisões, fábricas, escolas... No fim é tudo coisa do sistema dominador e opressor. A gente tenta achar que é caraminhola da cabeça desse povo que vê coisas demais... mas se pensar bem, é isso mesmo =P

    ResponderExcluir
  2. @Annie Adelinne Oi, Annie. Não li, não. Mas sempre tive vontade de ler. A profa de português do ensino médio citou esse livro também no debate. Daí saiu a historinha do recreio ser o banho de sol, rs!

    ResponderExcluir
  3. Ia falar do Vigiar e Punir também! rs
    Realmente, tem tudo a ver com o texto.

    Antigamente eu achava que inventário era só pra pessoas mortas, depois que era também coisa de The Sims, e na faculdade aprendi que na verdade se aplica a diversas situações. rs

    Muito legal ver você compartilhando coisas da sua profissão no blog e, realmente, temos que agradecer as oportunidades da nossa vida sempre! :D

    ResponderExcluir

Não seja covarde e dê a cara a tapa.
Anônimos não são bem-vindos.
O mesmo vale para os spammers malditos. Se você fizer spam nesse blog, eu vou perseguir você e acabar com a sua vida.
Estamos entendidos?